terça-feira, 24 de dezembro de 2013

AS MOSCAS DA PRAÇA PÚBLICA – Friedrich Nietzsche



“Refugia-te, meu amigo, em tua solidão! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens, e crivado pelos aguilhões dos pequenos.

Dignamente, contigo, sabem calar os bosques e as penhas. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, à árvore de ampla ramagem, que escuta silenciosa, suspensa acima do mar.

Onde cessa essa solidão, começa a praça pública, e onde começa a praça pública, começa também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas.

No mundo, as melhores coisas não valem nada sem alguém que as represente; grandes homens chama o povo a esses atores.

O povo mal compreende o que é grande, quer dizer, o que é criador. Mas tem um sentido para todos os atores e cômicos das grandes causas.

Ao redor dos inventores de valores novos gira o mundo; gira invisivelmente. Mas ao redor dos atores giram o povo e a glória; assim ‘o mundo marcha’.

Espírito tem o cômico, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente – crer em si mesmo.

Amanhã terá uma nova fé e depois de amanhã outra mais nova. Possui percepções rápidas como o povo, e intuições variáveis.

Derrubar: a isso chama demonstrar. Tornar-se louco: a isso chama convencer. E o sangue é aos seus olhos o melhor dos argumentos.

Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra nos ouvidos delicados. Na verdade, só acredita nos deuses que fazem muito ruído no mundo.

Cheia de truões ensurdecedores está a praça pública e o povo se vangloria de seus grandes homens. São para ele os ‘homens da hora’.

Mas o momento os oprime, e eles oprimem a ti, e te exigem um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra?

Não invejes esses espíritos opressivos e absolutos, ó amante da verdade! Jamais a verdade se entregou nos braços dos intransigentes.

Volve ao teu asilo, longe dessa gente tumultuosa; é só na praça pública que vos assediam para arrancar-vos ‘um sim ou um não?’.

Lenta é a vida das fontes profundas; têm de esperar por muito tempo antes de saber o que caiu em sua profundidade.

Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e do renome. Longe da praça pública e do renome viveram sempre os descobridores de valores novos.

Refugia-te, amigo, em tua solidão; vejo-te crivado por moscas venenosas. Foge para onde sopra o vento rijo.

Refugia-te em tua solidão! Viverás demasiadamente próximo dos pequenos e dos míseros. Afasta-te de sua vingança invisível! Tem para ti apenas um sentimento, o rancor.

Não levantes mais o braço contra eles! São inumeráveis, e não é teu destino ser enxota-moscas.

Inumeráveis são esses pequenos e míseros; e altivos edifícios se viram destruídos por gotas de chuva e ervas daninhas.

Tu não és pedra, mas já te fenderam muitas gotas. E muitas gotas acabarão por fender-te, e por arrebentar-te em pedaços.

Vejo-te fatigado pelas moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensanguentado em cem pontos, e teu orgulho desdenha até de encolerizar-se.

Sangue desejariam elas de ti em sua maior inocência; suas almas anêmicas reclamam sangue, e picam com a maior inocência.

Mas tu que és profundo, sentes profundamente até as pequenas feridas, e antes de curar-te, corria já pela tua mão a mesma vermina venenosa.

Pareces-me demasiado altivo para matar a esses gulosos. Mas cuida que não seja o teu destino suportar toda a sua venenosa injustiça!

Também zumbem à tua volta: mesmo quando te louvam seus louvores são pura importunação. O que querem é estar próximos de tua carne e de teu sangue.

Adulam-te como se adula a um deus ou a um diabo; choramingam ante ti como diante de um deus ou de um diabo. Que importa! São aduladores e choramingas, e nada mais.

Também costumam fazer-se amáveis contigo. Mas essa foi sempre a astúcia dos covardes. Sim; os covardes são astutos!

Pensam muito em ti com alma mesquinha. Tu és sempre suspeitoso! Tudo o que dá muito que pensar se torna suspeitoso.

Castigam-te por tuas virtudes. Não te perdoam, na verdade, senão as tuas faltas.

Como tu és benévolo e justo, dizes: ‘São inocentes da pequenez de sua existência’. Mas as suas almas estreitas pensam: ‘Toda a grande existência é culpada’.

Embora sejas benévolo para com eles, consideram-se ainda desprezados por ti, e te pagam os benefícios com ações dissimuladas.

Teu orgulho sem frases sempre os desgosta, e se alvorotam toda vez que és bastante modesto para ser vaidoso.

O que reconhecemos no homem é o que nele também atiçamos. Guarda-te, pois, dos pequenos!

Em tua presença, sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.

Não notaste como costumam bruscamente emudecer quando deles te aproximas, e parece que as forças os abandonam como o fumo abandona um fogo que se apaga?

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Filosofia... Direito... Pitadas

Para intérpretes do direito mais afeitos às ideias kantianas, só o que importa é fazer justiçaSe o poupador tem razão em seu pleito, deve ser atendido, não importando os resultados. "Fiat iustitia, pereat mundus" (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça), escreveu o filósofo alemão.

Receio, entretanto, que não possamos abraçar tão alegremente os postulados kantianos. Sistemas judiciários, principalmente quando tratam de temas de repercussão geral, precisam de pitadas de consequencialismo. Se é verdade que o reconhecimento de perdas na poupança teria um grande impacto negativo para a economia, o STF não pode se dar ao luxo de ignorar esse aspecto (o que não implica que juízes devam julgar olhando só para os resultados).

A pergunta, no fundo, é o que caracteriza uma nação: o passado comum, como queriam os românticos, ou a vontade de construir um futuro, como advogava o filósofo francês Ernest Renan? Creio que as sociedades que apostam na segunda fórmula tendem a ser mais dinâmicas.