quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Arremedo de um conto

Beach, a pouco mais de seis meses depois da minha separação, fui feliz com Stella, até que tudo se perdeu num dia ruim. Ainda me adaptava a vida solitária, que nunca imaginei que iria viver. Sempre me vi acompanhado, cuidado, vigiado. Porém, a realidade dos últimos meses me fizera até gostar do silencio e de falar sozinho. Assim como o Jow que passava o dia a cobrar dois dolares por cada um que queria ir ao píer para pescar ou apreciar o mar, se era turista cobrava cinco para bater fotos da baia ao sul, assim também passei a cobrar pedágio dos sentimentos que queriam atravessar a ponte em direção as minhas emoções. 
Egoisticamente analisava o que ia ganhar com isso ou com aquilo, sempre, sem exceções. 
Naquela manha terminara minha caminhada habitual junto ao Pier na Comercial Avenue, depois de sentar a beira mar, com um cafe no copo ainda pela metade, fui logo abordado por um dos inúmeros pedintes que transitavam desde a madrugada por ali. 
Anything helps! Clamava em tom quase sussurrante. Alguns trocados do cafe saiam como de habito naquele “bom dia” bem esquisito. Longe, na areia da praia ,um casal sentado lado a lado, protegidos do frio com espessas mantas, pareciam ter feito uma vigília a espera do nascer do sol, um espetáculo com hora certa e plateia atenta. Símbolos de uma companhia oportuna e fiel para aquela manhã. Um surto de inveja, por um instante, me assaltou, mas logo me distraí com as aves que rodeavam, pelicanos famintos, pombos e uma revoada de gaivotas me deslocaram a atenção.

O gordo Henry sai da ponte com um pescado em mãos, valeu pagar o pedágio naquela manhã, já tinha uma moqueca para preparar e almoçar com Vitoria, a venezuelana que fazia dos frutos do mar, frutos divinos, para deleite do feliz paladar do gordo Henry. Ele tinha seus encantos e segredos para que a bela Vitoria fosse tão alegre, solidária e fiel. A recompensa na arte da mesa e na arte da cama era apenas ventilada pelos cubanos invejosos que frequentavam o Gatsby Jazz Restaurant, uma alusão ao Grande Gatsby. Chorava de rir ao ver as desculpas esfarrapadas para justificar o sucesso do gordo Henry em comparação com as murmurações dos cubanos longe da ilha. Mas lembrava do Drummond: "o que se passa na cama é segredo de quem ama”, e, então, sorria por dentro.

Lhe batizei Gabo, em homenagem ao  autor de cem anos de solidão que estava a ler pela enésima vez, logo se encostou na poltrona, deitado sobre o tapete da antessala, bem próximo a porta de entrada, parecia estar muito agradecido e com receito de abusar da hospitalidade, completou um breve cochilo para depois se distrair com ossos do Ribs lançados ao lixo na noite anterior, mas resgatados para a emergência da ocasião.
Enquanto me preparava para começar a jornada de trabalho, colocando o colete e escolhendo as lentes e a maquina fotográfica para cobrir a pauta do dia, Gabo reconhecia o território em busca de um local apropriado para cumprir as obrigações de sua natureza. Logo notei que precisaria readaptar o local para mais um morador solitário e fazer as compras da casa para essa nova companhia. 
Fechei a porta e me chegou ao coração o sentimento de que ainda nao havia perdido a capacidade de confiar. 

Xxxxxx

A inauguração de um residencial construído para os imigrantes, cuja mão de obra estava a levantar o país, foi a principal pauta no fim de tarde. Na redação, pesquisamos os desenhos urbanísticos e arquitetônicos de toda a área projetada. Longe do litoral e da marina, numa região horizontal e ampla, foram construída inúmeras casas, nos mesmos modelos, para dar residencial digna aos cubanos, peruanos, chineses e latinos que se aventuravam pelas terras do Tio Sam. Para os adquirentes a valores apoiados por finaciamentos médicos era o paraíso da moradia em terra estranha. Mas, na minha lente, captei os cômodos pequenos e restritos, a construção embrionária que ainda exigiria muitos anos de trabalho para adotar-se as necessidades mais próximas da dignidade. Ao seu favor estava o ceu, sempre estrelado e límpido pelas construções em pouca altura de toda aquela região.

Nao havia vista  horizontal, somente vertical, voltada para o céu ou para o chão, pouco para o próximo e intima demais para uma família viver. De alguma maneira lembrava o prisão politica que vivi, uma sela no auto do palácio, de costas para o mar mas de frente para o morro, nem sequer tinha o direito de me comunicar com o mundo exterior, mas tinha o direito de fazer o meu próprio cafe na cafeteira de pequeno porte doada pelo carcereiro principal. Nao tinha dignidade nem para receber a parda valnice que insistia em me visitar, pela gratidão aos anos de vacas gordas que oferecia um farelo de atenção e ajuda, por breves instantes de sua companhia.
Passavam-se as vezes meses que ela nao aparecia, mas nao deixava passar três meses para nao cair na desgraca da ingratidão, era ela a única fonte de prazer e noticias isentas que possui. 
Passados os anos de chumbo, fui posto em liberdade (senti um amargo na alma, pois a maioria dos meus camaradas estavam mortos e desaparecidos), segui a vida adiante com a arte na lente da minha maquina de fotografar. Carrego hoje no sentimento e na minha historia a força das imagens que ja me garantiram alguns prêmios importantes, mas nao me basta, vivo a agonia de pagar uma conta por dia, quando dá. Talvez, se der a sorte de ter uma morte trágica, se faça leitura dos meus discursos e posições para fomentar alguma causa nobre, se é que ha como acompanhar. 
Deixo de lado esses pensamentos queixosos e me detenho na miséria que os vícios impõe aos negros que residem no residencial. De fato, a carne negra é a mais barata do mercado. Eles se amontoam em torno do posto de gasolina, onde alguns desavisados param para abastecer, antes de mendigarem umas parcas moedas, ja avisam que nao precisa ter medo, nao vai ter violência e tal. Apenas uma maneira de diminuir o temor e ficar ao lado do carro até receber alguma coisa. Como urubus me torno da carniça, aproveitam a ma sorte para se satisfazerem.